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Concertos da Justiça

Carlos Oliveira

*Concerto comentado – Ruínas de Conímbriga, Termas do Aqueduto

Honrado e agradecido pelo amável convite que me foi dirigido pela Dr.ª Emília Martins, devo começar por expressar o gosto que tenho em colaborar, uma vez mais, com a Orquestra Clássica do Centro. É mais uma etapa de uma parceria que mantemos há já mais de dois anos, designada “Concertos da Justiça”, que começou na Comarca de Leiria e se mantém agora na Comarca de Coimbra.

Como decorre da nossa lei fundamental, os tribunais, enquanto instância formal de controle social democrático, radicam no povo, ou seja, administram a justiça em nome do povo. O poder judiciário legitima-se, pois, nessa relação de representação popular, e tem como exclusivo desiderato servir os cidadãos, assegurando a defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, reprimindo a violação da legalidade democrática e dirimindo os conflitos de interesses públicos e privados.
Nas palavras de Romain Rolland, novelista, biógrafo, compositor e musicólogo francês, “é belo ser-se justo. Mas a verdadeira justiça não permanece sentada diante da sua balança, a ver os pratos a oscilar”. E é indiscutível que a justiça não se realiza senão em constante intermediação com as pessoas concretas, quer sejam os outros profissionais do direito, quer sejam as próprias partes, arguidos, testemunhas, ou o comum cidadão.
Por isso, os tribunais, mesmo ofuscados pelo seu crescente protagonismo social e mediático, que coloca diariamente os seus profissionais e as suas decisões nas primeiras páginas dos jornais, nos noticiários e nas discussões mantidas nas redes sociais, só têm a ganhar com a abertura das suas portas às outras instituições da sociedade em que se inserem.
Por isso, não tenho qualquer dúvida em afirmar que esta parceria, mesclando o judiciário e a cultura musical, tem sido extremamente benéfica para a imagem da justiça, aproximando-a do cidadão.

O local em que nos encontramos fala por si.
De aglomerado populacional pré-céltico e lusitano a cidade romana, estrategicamente situada entre as cidades de Olisipo (Lisboa) e Bracara Augusta (Braga), Conímbriga constitui um dos mais importantes sítios arqueológicos nacionais. Pessoalmente, apaixonado pela história e pela antiguidade clássica desde tenra idade, Conímbriga sempre exerceu sobre mim uma intensa atração e curiosidade, pois cresci em Coimbra, a poucos quilómetros deste local.
Compreendem, assim, que a oportunidade de visitar uma vez mais este local, e até assistir e comentar um concerto da Orquestra Clássica do Centro, me alegre e emocione, e até me cause uma pontinha de orgulho!

Mas vamos ao que mais interessa!
Vivemos num mundo intrinsecamente complexo, multifacetado, fragmentário, globalizado, industrializado e urbanizado, plural e rendido ao consumismo, e com elevado índice tecnológico, indiscutivelmente próximo do “admirável mundo novo” prognosticado por Aldous Huxley no século passado. Esta complexidade do ser e do viver na época atual foi ainda agravada pelo estado pandémico que atravessamos, enfatizando os receios, quebrando laços sociais e até familiares, e originando uma crise social e económica cujos reais contornos ainda não conhecemos na totalidade.
Ora, é nestes momentos difíceis de crise que a ação da justiça se revela especialmente importante, constituindo a derradeira linha de defesa dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, e da manutenção do próprio Estado de Direito. Como afirmava Michel Miaille, professor de direito e de ciência política francês, o direito é um “conjunto de técnicas para reduzir os antagonismos sociais, para permitir uma vida tão pacífica quanto possível entre homens propensos às paixões”.
O direito revela-se, assim, não apenas como uma ciência humana, mas também como uma arte: a arte de pacificação social.
O ser humano, livre por natureza, necessita de conviver, de se integrar num grupo social. Ora, a coexistência pacífica de seres humanos livres numa sociedade apenas se poderá alcançar, tanto quanto nos ensinam os milénios da história humana, pela imposição e obediência a regras básicas de convívio social.
A juricidade constitui, portanto, uma dimensão humana essencial, expressa no famoso brocardo “ubi societas ibi ius” (significando que onde exista uma sociedade tem de haver normas jurídicas ou direito).
Na lição de Paulo Ferreira da Cunha, professor de direito, este (o direito) deve ser analisado a partir de uma tríplice perspetiva: técnica, ciência e arte. Mas é a arte que comanda a vida do direito, sendo a ciência e a técnica, embora imprescindíveis, apenas suas servidoras. No mesmo sentido, o professor Sebastião Cruz dizia que o direito como ciência ou arte “diz-nos o que é justo e o que é injusto; como técnica, diz-nos como alcançar o justo e evitar o injusto”.
Uma sentença ou um acórdão não deixam de ser um produto literário, e é conhecida a natureza eminentemente cénica de uma audiência de julgamento.
Há, portanto, uma ligação estreita entre o direito, a arte, a cultura e a música, sendo esta obviamente uma manifestação artística e cultural.
O primado do direito, entendido como agente de pacificação social, e fenómeno cultural e artístico, é a primeira nota que aqui deixo por um mundo melhor. O direito, a arte e a cultura, e a música, afastam o homem moderno da sua herança genética selvagem, e obnubilam o seu id irracional.

Essa missão do direito realiza-se por múltiplas formas, desde logo cristalizando-se em diversos textos jurídicos fundamentais.
Um desses corpos de normas jurídicas básicas são os chamados “direitos humanos”, inerentes a todos os seres humanos, independentemente da sua raça, género, nacionalidade, etnia, idioma, religião ou qualquer outra condição. Corporizam estes direitos normas jurídicas essenciais à condição humana, conferindo a todos os seres humanos, sem qualquer forma de discriminação, um elenco de direitos e liberdades fundamentais.
As bases desse corpo de leis são a Carta das Nações Unidas e a Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotadas pela Assembleia Geral da O.N.U. em 1945 e em 1948, respetivamente.
A tutela de valores como a vida, a liberdade, a igualdade, a dignidade humana, a inclusão social, etc., opera-se, pois, pela afirmação do “império da lei, para que o ser humano não seja compelido, como último recurso, à rebelião contra a tirania e a opressão”, como brilhantemente se postulou no preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos Humanos.
O reconhecimento e garantia desses valores fundamentais da humanidade convoca indiscutivelmente o direito, razão pela qual a nossa Constituição, como muitas outras, caracteriza a República Portuguesa como um Estado de direito democrático.

A própria inclusão social, valor cada vez mais relevante na nossa sociedade e referencial do nosso imaginário coletivo, opera-se forçosamente pela criação de leis de proteção dos direitos e de garantia do bem-estar de grupos minoritários, desfavorecidos, perseguidos e excluídos, e de proibição de comportamentos excludentes e discriminatórios. Embora a luta por uma sociedade mais justa, igualitária e inclusiva não se possa esgotar na simples criação de normas e diplomas jurídicos, é inquestionável que o direito constitui uma conditio sine qua non do longo percurso a percorrer.

O direito desempenha ainda um papel fundamental na proteção de valores como o ambiente, que na época atual também assume indiscutível centralidade no fórum público, e o património.
E que melhor ocasião e local para evocarmos a necessidade de defesa do património cultural e monumental do que este espaço museológico e este concerto, que integra as Jornadas Europeias do Património, iniciativa anual do Conselho da Europa e da União Europeia, e que hoje, dia 3 de outubro, termina.
Neste ano, sob o tema “Património: Tudo incluído”, as Jornadas visam sensibilizar os cidadãos europeus para a riqueza e diversidade cultural da Europa, criar um clima que estimule a apreciação das culturas europeias, e enfatizar a necessidade de proteger o património cultural e de combater o racismo e a xenofobia, encorajando uma maior tolerância na Europa, e para além das fronteiras nacionais.
Ora, a prossecução de todos estes valores e interesses não é exequível sem o adequado quadro normativo-legal, designadamente a legislação ambiental e de proteção e valorização do património.

Por tudo o acabado de descrever, é indiscutível o relevo que o direito assume nas sociedades humanas, enquanto instrumento de garantia e tutela de todos esses valores, instituições e direitos.
Esta fundamentalidade do direito não é privativa das sociedades atuais, como o demonstram todos os tratados de história antiga.
Recorde-se, a propósito, que o direito português tem uma significativa base e influência latina, sendo claramente uma das heranças que os povos peninsulares receberam dos romanos.
Como é sabido, as legiões romanas conquistavam territórios pela força bruta da guerra, como elucidativamente é ilustrado pelo que sucedeu precisamente nesta data, 3 de outubro, mas do ano de 52 a.C. Nessa data, Vercingetórix, líder dos gauleses, rendeu-se aos romanos sob o comando de Júlio César, encerrando o cerco e a batalha de Alésia, e a conquista da Gália.
Porém, os romanos habitualmente não dizimavam os povos conquistados, antes os integrando no seu império, operando a assimilação da cultura romana pelas sociedades subjugadas – a chamada romanização.
Esta aculturação implicava a aplicabilidade do direito romano na sociedade, constituindo um dos benefícios que a civilização romana oferecia aos povos conquistados. Este exemplo de integração social sucedeu neste mesmo lugar há cerca de dois milénios atrás, muito embora só com a concessão da latinidade por Vespasiano e da cidadania por Caracala os povos peninsulares tenham passado a beneficiar da regência pelo direito romano.
Este exemplo milenar, proveniente da antiguidade clássica, merecendo evocação nos dias que correm, deverá estimular a nossa atitude de abertura perante os outros povos, abrindo-lhes as portas, acolhendo-os, integrando-os e estendendo-lhes os benefícios da nossa civilização.

Não podemos, contudo, esquecer que a tutela e garantia desses valores e direitos não pode ser realizada de forma privada, por via da chamada vingança privada (forma de reação popular à ocorrência de um crime ou à lesão de um direito, em que a vítima, os seus parentes, e até o seu grupo social ou tribo, respondiam sem proporção à ofensa, atingindo não só o ofensor, como todo o seu grupo).
Como já referi, só os tribunais têm legitimidade para assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, reprimir a violação da legalidade democrática e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados.
Permitam-me por isso que sublinhe e realce o papel fundamental que os tribunais desempenham na sociedade atual, e que frequentemente é esquecido ou desvalorizado. Todos os mencionados direitos e valores fundamentais da nossa sociedade, e da nossa vida quotidiana, como a vida, a liberdade, a igualdade, a dignidade humana, a inclusão social, o património, etc., são, em regra, respeitados porque existem tribunais que os defendem e afirmam.
Os tribunais não são, portanto, um espaço dos juízes, magistrados, advogados e funcionários, mas antes instituições de defesa dos direitos de todos os cidadãos. É imperioso que não nos esqueçamos desta realidade, e que valorizemos e defendamos este pilar fundamental da nossa vida comunitária. Isto, claro, se desejarmos continuar a beneficiar de uma vida livre, estável, organizada, segura, tendencialmente igualitária e justa.

Para terminar, e porque estamos num local de elevado relevo patrimonial, não posso deixar de referir que o sistema de justiça apresenta como característica fulcral “o seu elevado peso simbólico, expresso no ritual judiciário, mas também nos próprios espaços em que se efetivam os julgamentos, com a solenidade e publicidade que lhes estão imanentes” (palavras dos juízes Luís Azevedo Mendes e Nuno Coelho).
Ora, “nada encarna melhor essa representação da justiça que o «Palácio da Justiça», expressão de uma monumentalidade pública e rica de símbolos apropriados à excecionalidade do poder público e da autoridade”, como afirmou o professor de direito francês Jacques Commaille.
Símbolo essencial da Justiça, a sua casa (domus iustitiae) ou Palácio constitui inequivocamente um dos mais significantes edifícios públicos.
Eivado de sinais, marcas, e elementos distintivos, o Palácio de Justiça revela-se como um espaço peculiar de convívio e comunicação, de diálogo e confronto, de tese e antítese, em que a arquitetura expressa forçosamente uma opção situada para lá da mera funcionalidade, preocupando-se com a materialização de valores, de papéis e de estatutos, aí assumidos e representados. Não se trata de um mero edifício, composto por gabinetes, salas, corredores e divisões, assumindo a natureza de espaço social e emocional, “em que a organização física do espaço transmite mensagens não-verbais de conteúdo social e psicológico aos seus utilizadores” (Universidade de Camberra, 1998).
Não espanta, por isso, que Jean Nouvel (arquiteto do Palácio de Justiça de Nantes) tenha afirmado que “todos temos uma ideia da justiça. Incluindo os arquitetos. Detestaria ser julgado num local clandestino. Deve existir na justiça alguma garantia: a de ser julgado em lugar público, num espaço democrático e confortável. Estas dimensões de identificação da justiça constituem as garantias de democraticidade dessa mesma justiça”.
Infelizmente, o poder político tem descurado, nas últimas décadas, esta necessidade de dotar os tribunais de edifícios – palácios da justiça – adequados à receção condigna dos cidadãos e à realização da justiça. Esta infeliz realidade contribui significativamente para o desprestígio do nosso sistema de justiça, devendo merecer o repúdio de todos. E assim é porque, repito, os tribunais não constituem espaços privativos dos juízes, magistrados, advogados e funcionários, mas sim pilares primordiais de defesa dos direitos de todos os cidadãos e de garantia do nosso modo de vida.
Os tribunais são, e devem ser, de todos.

São estas notas que aqui deixo por um mundo melhor, antecedendo as notas musicais que escutaremos de seguida, bem mais agradáveis do que estas já longas e fastidiosas palavras.

O concerto, designado “Sopros da Orquestra Clássica do Centro”, será dirigido pelo maestro Diogo Costa. Nascido em 1989, Diogo Costa é um jovem maestro com experiência num vasto repertório musical, que se estende desde a música antiga até à música contemporânea. Estudou na Escola Superior de Música de Lisboa e na Academia Nacional Superior de Orquestra – Metropolitana. Concluiu com distinção uma pós-graduação no Royal Northern College of Music de Manchester, onde frequentou o programa de Mestrado em Direção de Orquestra. Entre outras, já dirigiu a Orquestra Sinfónica do Porto Casa da Música, a BBC National Orchestra of Wales, a BBC Philharmonic Orchestra, a Orquestra Sinfónica Portuguesa, e também a Orquestra Clássica do Centro, com a qual tem recebido as melhores críticas pelos diversos repertórios abordados. É Diretor Artístico e Maestro da Banda de Música de Antas – Esposende, de onde é natural, e professor de Orquestra na Escola Profissional Artística do Alto Minho.

Escutaremos em primeiro lugar “Serenade for Winds, Opus 7”, de Richard Strauss, compositor e maestro dos séculos XIX e XX, um dos principais representantes do Romantismo alemão tardio. Nascido em 1864, filho de Franz Strauss, importante trompista na Orquestra da Corte de Munique, manifestou precocemente o seu talento musical, tendo aos dezoito anos já composto cerca de 140 peças. Admirador de Wagner, ascendeu à ribalta quando Hans von Bülow lhe encomendou a Suite para 13 madeiras (em 1884) para a Orquestra de Meiningen, obra que o próprio Strauss dirigiu. A partir daí, o sucesso enquanto maestro foi acompanhando o sucesso enquanto compositor.
A Serenata para sopros, opus 7, é uma peça composta em 1881 (de juventude, portanto), e estreada em Dresden em 1882.

Seguir-se-á então a peça “Petite Symphonie”, de Charles Gounod, compositor francês do século XIX. Nascido em 17 de junho de 1818, é conhecido sobretudo pelas suas óperas e música religiosa. Estudou no Conservatório de Paris e em Roma, tendo ainda passado por Viena. Foi também organista na Igreja das Missões Estrangeiras em Paris, terminando os seus dias compondo somente música religiosa. A peça que escutaremos foi composta em 1885, no período romântico do compositor, que a dedicou à Société de Musique de Chambre pour Instruments à Vent.

Posteriormente, escutaremos “Sept danses”, de Jean Françaix, compositor e pianista neoclássico francês do século XX. Nascido em 1912, filho de pai Diretor do Conservatório de Le Mans, musicólogo, compositor e pianista, e de mãe professora de canto, Françaix começou a compor logo aos seis anos de idade, com um estilo fortemente influenciado por Ravel. Foi ainda um pianista dotado e premiado. Com um estilo marcado pela leveza e sagacidade, pretendia sobretudo “oferecer prazer” com a sua composição.

Para finalizar, a peça “A Britten Celebration”, de Sérgio Azevedo, compositor conimbricense contemporâneo, nascido em 1968. Tendo estudado composição na Academia de Amadores de Música de Lisboa e na Escola Superior de Música de Lisboa, doutorou-se em julho de 2012 na Universidade do Minho. Ganhou vários prémios de composição, em Portugal e no estrangeiro (como o Prémio das Nações Unidas e o Prémio Fernando Lopes-Graça). Apresenta uma vasta quantidade de obras de concerto em todos os géneros, do concerto à ópera, passando por obras de câmara e para solistas. Integra, entre outros júris de concurso de composição e de instrumentos, o júri do Prémio Francisco Martins, promovido pela Orquestra Clássica do Centro.
É desde 1993 professor na Escola Superior de Música de Lisboa.