Um diálogo musical franco-português
TEMPORADA FRANÇA-PORTUGAL 2022
Proposta do maestro Michaël Cousteau e do pianista Bruno Belthoise para a Saison Croisée France-Portugal 2022 – iniciativa conjunta dos governos dos dois países –, este programa coloca em destaque obras musicais dos dois países. Numa convergência de estéticas e cruzamentos temáticos, dispõe quatro compositores em espelho: Maurice Ravel e Benjamin Attahirrepresentam França; Fernando Lopes Graça e Anne Victorino d’Almeida representam Portugal, para lá de coincidirem na particularidade de ambos terem fortes afinidades com aquele outro país. Temos, portanto, duas referências da História da Música do século XX, lado a lado com duas figuras com provas dadas na criação musical dos nossos tempos.
Um Diálogo Musical Franco-Português
Fernando Lopes Graça
Sinfonieta (Homenagem a Haydn)
Anne Victorino d’Almeida
Concerto para Piano e Orquestra
Benjamin Attahir
O Pescador e a Lua
Maurice Ravel
Ma mère l’Oye (Suite)
Bruno Belthoise piano | Raquel Camarinha soprano | Michaël Cousteau maestro
Tournée organisée dans le cadre du projet “Un dialogue musical franco-portugais”, œuvres de Fernando Lopes-Graça, Maurice Ravel, Anne Victorino d’Almeida et Benjamin Attahir.
Avec le soutien de : Institut Français, Camões Instituto da cooperação, GEPAC. AvA Musical Editions, CIC Iberbanco, Les Nouveaux Talents.Dgartes / MC, Municipio de Coimbra
La Saison croisée s’inscrit dans la continuité des présidences portugaise et française de l’Union européenne
A propósito das relações musicais entre França e Portugal
Por Bruno Belthoise
A Temporada Cruzada França-Portugal 2022, iniciativa europeia na qual se insere o programa apresentado pela Orquestra Clássica do Centro dirigida por Michaël Cousteau, dá-nos a oportunidade de evocar alguns dos factos que num passado recente traçaram um caminho nas relações musicais entre França e Portugal: a evolução organológica dos instrumentos, a atracção pela modernidade no Paris da Belle Époque, a investigação etnomusicológica, os intercâmbios pedagógicos e artísticos. Como veremos adiante, estes factos permitem-nos constatar que, desde o século 19, foram-se forjando gradualmente entre França e Portugal laços no meio musical, permitindo ao mesmo tempo encontros entre personalidades de destaque do panorama musical dos dois países.
O pianista e compositor português João Domingos Bomtempo (1775-1842) reside em Paris entre 1801 e 1810. No início do século 19, adopta uma postura pioneira fazendo face à influência italiana muito presente no meio musical português da época. Bomtempo escolheu Paris para desenvolver o seu virtuosismo, para se apresentar em público e dar a conhecer as suas composições, como a sua primeira Grande Sonate publicada em 1803 pela editora musical Leduc. Nos seus recitais, utiliza pela primeira vez os novos mecanismos de piano inventados por Sébastien Erard. Diversos artigos da imprensa francesa da época descrevem o seu impressionante itinerário de experiências com os novos pianos, instrumentos por vezes caóticos mas muitas vezes bastante prometedores. O músico português participa assim, de certa forma, no desenvolvimento do duplo escape, uma técnica revolucionária no fabrico de pianos que inspirará os músicos românticos e transformará a interpretação e a composição. Foi em grande parte graças ao seu virtuosismo enquanto intérprete, à sua curiosidade e ao seu espírito de iniciativa que Bomtempo contribuiu não apenas para a evolução do piano moderno em Paris mas também para a inauguração de uma estética nacional através da evocação de referências culturais portuguesas na sua música. Para além disso, ele foi o primeiro grande compositor português de música sinfónica; ele influenciou fortemente a vida musical do seu país através da criação, em 1822, da Sociedade Filarmónica e, em 1835, do Conservatório de Música de Lisboa.
Algumas décadas mais tarde, nasce Francisco de Lacerda (1869-1934) que será o “amigo português” de Claude Debussy. Com o encontro entre estes dois artistas em Paris inicia-se uma relação na qual prevalece uma consideração e um respeito mútuos. Em 1904, quando Francisco de Lacerda estudava na Schola Cantorum, Debussy repara numa partitura do jovem compositor português intitulada Danse du voile, publicada na Revue Musicale, e pede-lhe autorização para utilizar numa obra um dos seus temas. Com o acordo de Lacerda, esse tema tornar-se-á numa célula temática da Danse profane do compositor francês. A história de Francisco Lacerda em território francês é das mais frutíferas: correspondência epistolar com Debussy; peças para piano dedicadas à filha deste último; notável carreira como maestro. Para além disso, já na Suiça, mantém uma longa relação de amizade com Ernest Ansermet o qual tira proveito do savoir-faire do maestro português. Henri Duparc, grande admirador de Francisco de Lacerda, dedica-lhe a peça Aux étoiles. Estes encontros proveitosos com os mestres franceses abrem portas à aventura pelos caminhos da modernidade, numa época em plena revolução da escrita musical. Os músicos portugueses acompanharam estas transformações experimentando e trabalhando também novas linguagens.
Durante as primeiras décadas do século 20, alguns artistas portugueses tentam introduzir no seu país essa efervescente modernidade parisiense mas enfrentam sérias dificuldades em dar a conhecer as suas obras numa sociedade ainda bastante conservadora. O pintor Amadeo de Sousa Cardoso (1887-1918), os poetas Mário de Sá Carneiro (1890-1916) e Fernando Pessoa (1888-1935) participaram nesta corrente modernista. Em 1910, ano da proclamação da República, uma obra orquestral emblemática, extremamente inovadora, inspirada no ensaio Les Paradis Artificiels de Baudelaire, causou escândalo e marcou a história do impressionismo na música portuguesa: Paraísos Artificiais, poema sinfónico de Luís de Freitas Branco (1890-1975). A criação musical em Portugal vai-se desenvolvendo ao longo do século 20, estabelecendo até aos dias de hoje numerosos pontos de convergência nos ideais estéticos entre músicos franceses e portugueses. É em 1932 que Maurice Ravel convida o maestro Pedro de Freitas Branco (1896-1963), vindo especialmente de Portugal, para dirigir as suas próprias obras. Ravel considerava-o como um dos melhores intérpretes da sua música. Gravações históricas são testemunhos sonoros das magníficas interpretações deste prestigioso maestro português que assumiu a direcção do Festival Ravel onde se estreou o Concerto em Sol Maior. Além disso, é graças à organização dos concertos do Orpheon Portuense pelo compositor Luiz Costa (1879-1960) que Maurice Ravel descobre a riqueza da vida musical do Porto. Criada em 1881, esta sociedade de concertos trouxe à cidade os melhores músicos da época: os intérpretes Wanda Landowska, Pablo Casals, Arthur Rubinstein, mas também vários compositores estrangeiros. Maurice Ravel guardará fortes recordações dos seus concertos no Porto e da forma calorosa como o receberam. Em 1931, os compositores Armando José Fernandes (1906-1983) e Jorge Croner de Vasconcellos (1910-1974) partem para Paris para estudar com Nadia Boulanger, Paul Dukas e Alfred Cortot. De regresso a Lisboa, o ensino que praticam e a música que compõem conservam um espírito de clareza “à francesa” mas, mesmo apesar disso, nalgumas obras integram temáticas do folclore português revelando assim uma ligação com suas raízes.
Outra figura emblemática e carismática da música portuguesa do século 20, o compositor Fernando Lopes-Graça (1906-1994), decide em 1937 partir temporariamente para Paris devido à situação política complicada que se vivia durante o Estado Novo, encontrando-se nessa cidade com Charles Koechlin (1867-1950). Recebe deste ensinamentos valiosos e muito rapidamente penetra na vida musical parisiense. Na imensa obra que nos deixou (mais de 250 opus), encontramos uma magnífica peça para dois pianos intitulada Paris 1937 que reflecte as vivências artísticas de Lopes-Graça em França. A partir dos anos 40, foi a vez do etnólogo francês Michel Giacometti (1929-1990) se apaixonar pela música tradicional portuguesa ainda viva nas zonas rurais do país. Junta-se a Lopes-Graça para realizar com este a maior recolha musical jamais feita nas aldeias portuguesas, seguindo o exemplo de Béla Bartók (1881-1945) na Hungria. Este projecto colossal permite-nos hoje aceder às gravações e fotografias destes camponeses para os quais as actividades do quotidiano, como o trabalho nos campos e as festas, eram acompanhadas ao longo do ano pela música, por cantos e por danças. O trabalho metódico e dedicado de Michel Giacometti resultou num verdadeiro tesouro de documentos que se encontra actualmente conservado no Museu da Música Portuguesa em Cascais. Trata-se de um testemunho da dimensão cultural da Europa que coloca Portugal como um dos países com maior diversidade de património musical. Este património influencia profundamente as próprias composições de Lopes-Graça e as de novas gerações de compositores, como Carlos Marecos (nascido em 1963) e Sérgio Azevedo (nascido em 1968).
O diálogo entre músicos franceses e portugueses continua com o convite que Pierre Boulez endereça a Emmanuel Nunes para integrar o IRCAM. O artista português, nomeado officier des Arts et des Lettres em 1986, compõe em Paris as suas obras Wandlungen (1986) e, em seguida, Lichtung I (1990-1991). Emmanuel Nunes terá como discípulo o compositor francês Sébastien Béranger (nascido em 1977) que, em 2006, publica uma análise sobre a obra emblemática Nachtmusik I do mestre português num artigo intitulado Nachtmusik I – Petite musique de nuit selon Emmanuel Nunes. No âmbito da música popular, é a partir dos anos 90 que a França descobre verdadeiramente o carácter expressivo do fado, inscrito desde 2011 na lista no Património Cultural Imaterial da Humanidade da UNESCO. O público francês apercebe-se o quanto a relação poesia-música se mantém viva na cultura portuguesa. O espectáculo Portugal, racines rurales, passions urbaines, estreado em maio de 1997, co-produzido pela Cité de la Musique em Paris e pelo Teatro São João no Porto, é a prova desta consciencialização sobre a riqueza do Fado o qual dialoga neste espectáculo com outras músicas tradicionais de zonas rurais de Portugal.
As co-produções dos dias de hoje permitem que obras de excelentes compositores portugueses sejam tocadas e até mesmo estreadas em França: Alexandre Delgado, Luís Tinoco, António de Sousa Dias, Pedro Amaral… Os novos compositores franceses são também interpretados e gravados em Portugal: Bernard de Vienne, Emmanuel Hieaux, Pascal Dusapin, Philippe Manoury…
Com o programa deste concerto, dialogarão entre si as obras de Maurice Ravel e Fernando Lopes-Graça, assim como as obras da nova geração representada por Benjamin Attahir (nascido em 1989) e Anne Victorino d’Almeida (nascida em 1978). Nesta noite musical inserida na Temporada Cruzada, celebramos esta aventura artística franco-portuguesa. Iluminadas pelas cores da língua latina e pela capacidade de uma escuta recíproca, a música francesa e a música portuguesa investem hoje na criação artística como um acto político vivendo assim mais um momento histórico na relação cultural entre os dois países.
(tradução: Odette Branco)